LIBERDADE DE COMÉRCIO OU DE IDÉIAS?
A diversidade cultural - como um direito fundamental da humanidade - se choca frontalmente com as políticas liberais predominantes no mundo atualmente - em particular no chamado ''livre comércio'' - que promove, em uma de suas tantas conseqüências negativas, a homogeneização cultural - fenômeno hegemônico no mundo atual.
A iniciativa da Unesco de elaborar uma convenção internacional de caráter normativo e vinculante - Convenção sobre a Proteção da Diversidade dos Conteúdos Culturais e as Expressões Artísticas - que brinde respostas às ameaças concretas à diversidade cultural em tempos de globalização liberal, defendendo o direito das nações e dos povos de proteger e estimular sua criação cultural, é objeto das grandes discussões entre diversidades versus achatamento cultural. A Convenção foi concebida como um instrumento jurídico permanente, para dar apoio legal às medidas e às políticas soberanas que adotem os Estados nacionais nessa questão. Ela pretende propiciar um maior equilíbrio nos intercâmbios culturais de distintos países do mundo e brindaria legitimidade às propostas para modificar os acordos comerciais nessa direção. Estabeleceria normas que os Estados signatários se comprometam a respeitar, no sentido de dar garantias para a diversidade de expressões culturais em cada país, em um marco de liberdade de expressão.
As negociações para o estabelecimento dessa Convenção encontram dificuldades em vários aspectos, a começar pelo estatuto legal da Convenção, ainda mais quando os EUA retornaram à Unesco e são o principal interessado na liberalização dos bens culturais como se fossem assimiláveis a outros bens comerciais. A expectativa é que as discussões possam estar concluídas no momento da 33ª sessão da Conferência Geral da Unesco, em outubro de 2005, antes da conclusão da Ronda Doha da OMC.
O primeiro esboço da Convenção se inspira na Declaração Universal sobre a Diversidade Cultural, aprovada pelos governos membros da Unesco em novembro de 2001, que reafirma a convicção de que o diálogo intercultural é a melhor garantia da paz, rejeitando as teses do choque de civilizações. Ambos documentos reconhecem que a diversidade cultural é um patrimônio comum da humanidade, tão necessária para o gênero humano quanto a biodiversidade para os seres vivos.
A proposta de texto para a Convenção destaca o caráter cultural e econômico dos bens e serviços culturais, que não devem ser considerados como mercadorias ou bens de consumo como os demais, porque ''são portadores de identidades, de valores e de significados''. Os Estados signatários da Convenção ''afirmam seu direito soberano a adotar medidas para proteger a diversidade das expressões culturais em seus respectivos territórios e reconhecem sua obrigação de protegê-la e promovê-la tanto em seus territórios como no plano mundial''. Estabelece também que os Estados podem ''adotar medidas, em especial regulamentares e financeiras, para proteger a diversidade em seus respectivos territórios, especialmente quando estes se acham em perigo ou em situação de vulnerabilidade''.
As pressões, especialmente dos EUA, são para manter a Convenção como uma mera declaração de intenções, sem poder de lei. Lembremo-nos que a única organização multilateral que tem poder de lei é a OMC, que pode punir países por suposta violação da ''livre competição'', enquanto denúncias de trabalho escravo e de exploração de crianças feitas pela Unicef e pela OIT ficam no papel. A isso os EUA querem reduzir a Convenção da Unesco. Países como a França, o Canadá, o México, a África do Sul, o Brasil, se situam na linha de frente pela diversidade cultural, enquanto os EUA reafirmam, pela boca dos representantes do governo Bush, a cantilena conhecida por nós aqui de que decisões desse tipo serviriam para ''controlar a informação e a livre criação artística''. Quando o que desejam são mercados livres para seguir avassalando a capacidade criativa dos outros com suas poderosas máquinas comerciais.
Os problemas para implementar uma Convenção desse tipo se colocam principalmente no plano dos subsídios, das cotas e do controle dos investimentos. Países que abriram seu setor audiovisual, no marco dos acordos da OMC, podem ter que oferecer subsídios a empresas nacionais e estrangeiras situadas no seu território. Paises que aplicam cotas para limitar a porcentagem de programação estrangeira no setor audiovisual, especialmente na televisão, vêm sofrendo pressões dos EUA para que elas sejam eliminadas. Sobre o controle de investimentos - recordando que os próprios EUA têm reservas protecionistas que limitam o acesso de investidores estrangeiros a seus mercados de rádio e de televisão e autorizam a outorga exclusiva de subsídios de produção artística a empresas nacionais - vários países renunciaram a esse direito. Os EUA se mostram menos rígidos nas medidas que se referem aos formatos tradicionais do audiovisual, que tenderão a desaparecer com as transformações tecnológicas, para concentrar-se no tema eletrônico, com o propósito central de assegurar as redes digitais, para que permaneçam fora dos protecionismos culturais. Buscam eliminar a distinção entre bens e serviços digitais, ao utilizar o termo ''produtos digitais'', o que equivaleria a abrir o mercado de bens. Interessam-se na liberdade de comércio, que os favorece e estandardiza o mundo cultural, em detrimento da diversidade cultural e da liberdade das idéias.
Emir Sader
Jornal do Brasil , 24/10/2004
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